Nem o frio úmido dos túneis subterrâneos, construídos no século XIV, contiveram minha excitação ao provar, direto do tanque e pelas mãos do mestre cervejeiro, uma cerveja produzida desde 1400 com a mesma receita e símbolo de Bamberg, a Rauchbier. Nada do que havia tomado antes se compara ao potente aroma defumado (rauch significa exatamente isso, defumado), a cremosidade e ao final sutilmente adocicado da Rauchbier da Brauerei Schlenkerla. E pensar que essa seria apenas minha primeira experiência sensacional na cidade que deixei já com vontade de voltar.
Bamberg, na Francônia (norte da Baviera), tem sua história misturada a história da cerveja – documentos apontam que, ali, se produz cerveja desde 1039 -, que segue sendo parte importantíssima da cultura e do cotidiano da cidade. Atualmente, possui 11 cervejarias na área central e 65 na região. Variedades de rótulos, são mais de 400. Não bastasse isso, também é sede de uma das maltarias mais aclamadas do mundo, a Weyermann. Foi, aliás, a visita guiada a Weyermann – que pode ser agendada aqui – que me deu a exata noção da complexidade e ciência envolvidas na produção de malte.
De acordo com a Lei de Pureza Alemã – a Reinheitsgebot, promulgada em 1516 -, cerveja é a bebida alcoólica fermentada produzida exclusivamente com água, malte, lúpulo e levedura. Parece simples, mas não é, não.
Comecemos com o lúpulo, por exemplo: a flor que concede amargor e ajuda a conservar a cerveja possui mais de 80 variedades, com cada uma delas chegando a perfis aromáticos distintos. Leveduras? São centenas. Mas malte é o grão da cevada germinado e carregado de açúcar, que servirá de alimento para a levedura que o transformará em álcool, certo? Hum, não é bem assim.
A Weyermann é especializada no que se denomina “maltes especiais”. Nesta categoria entram maltes caramelizados, torrados e defumados (obtidos através de diferentes métodos de secagem), de cevada, de trigo, de espelta, de farro… São quase noventa: Extra Pale Premium Pilsner Malt, Munich Malt, CARAPILS, Special W, Chocolate Wheat Malt, Melanoidin Malt e por aí vai. Agora pense em TODAS as variáveis de lúpulos, leveduras e maltes: quantas milhões de combinações são possíveis? Quantos milhões de sabores e aromas? O tour pela maltaria (fundada em 1887 e sob comando da sexta geração) me deu uma boa noção (que descobri não ter) do complexo processo de malteação e me fez valorizar ainda mais todo o trabalho duro e conhecimento por detrás do cada gole de uma boa cerveja.
Rauchbier: a mítica cerveja defumada
Indícios históricos apontam que os antigos egípcios já produziam cerveja. Inicialmente, era feita pelos padeiros, por conta dos ingredientes (leveduras e cereais). Então, a cevada era deixada de molho até germinar e depois moldada em bolos aos quais se adicionava a levedura. Por volta do ano 1000, a secagem do malte era padrão: já se sabia que era necessário parar a germinação do grão para que ele mantivesse açúcares suficientes para levar a fermentação em frente. O fogo era oúnico modo de encerrar o processo germinativo. O único método para obter fogo era queimando madeira. Então, por muitos séculos, todas as cervejas eram rauch (defumadas).
O avanço tecnológico, porém, tornou possível outras formas de secagem (a gás, energia elétrica) e as cervejas defumadas caíram no esquecimento. Menos em Bamberg. Atualmente, só há duas cervejarias que continuam produzindo seu malte com o processo ancestral, a Brauerei Schlenkerla e a Spezial .
O malte é aquecido sobre uma cama de madeira e fogo. A fumaça quente tanto o seca quanto o defuma, o que garantirá o sabor característico da rauch. A Schlenkerla mantém-se totalmente fiel às tradições, fermentando o mosto em recipientes de cobre e maturando a cerveja em túneis subterrâneos do século XIV. Coisa linda de beber.
E é só o conhecimento que nos faz abrir os olhos, compreender, aproveitar, reconhecer. Talvez por isso tenha gostado tanto de conhecer Markus Raupach, Presidente da Bierakademie, jornalista e sommelier (também conhecido como o “Papa da Cerveja”).
Markus – autor de diversos livros e guias sobre o tema e fundador da German Beer Academy – nos levou a um tour não só pelas brauereien de Bamberg, como também pela rica história da cerveja local e por sua relação íntima com a cultura. Nos guiou pela Schlenkerla, nos mostrou o lindo biergarten da cervejaria Spezial, conduziu excelente harmonização de cervejas e chocolates na Confiserie Storath, fez paradas estratégicas em lojas tentadoras como a die bierothek, elogiou as cervejas artesanais brasileiras que provou durante sua participação como jurado no Concurso Brasileiro da Cerveja de 2018 (em Blumenau) e me apresentou o melhor cheesecake que já provei na existência, na diminuta padaria e doceria Zuckerbrot, apenas porque citei que adoro a doçaria alemã (atencioso é pouco!).
Esqueça o american stile. Esqueça o cream cheese. Esse Rei dos Cheesecakes, Imperador da Leveza, Majestade da Sedosidade leva quark, raspas de limão orgânico e pouco açúcar. Quark é um queijo fresco produzido com leite não pasteurizado de vaca (no caso, de vacas alimentadas a pasto na região da Francônia) e tem textura parecida com a do fromage blanc francês. ULALÁ.
A paixão de Markus por sua cidade e pela cerveja é contagiante. E é compreensível que seja assim: ambas tem história e beleza de sobra.
Como conhecer as cervejarias de Bamberg
Há três boas maneiras de conhecer a rica história cervejeira e as mais de 400 variedades de cervejas produzidas na região de Bamberg: explorando sozinho, com o The Brewery Trail e num tour guiado pelo super especialista Markus Raupach. Se você gosta levemente do tema, a primeira opção é a melhor. Se você curte beber e quer saber um pouco mais sobre esse universo maltado, porém sem muita profundidade, a segunda opção é bacana. Mas caso você seja apaixonado por cerveja, como eu, sem dúvida uma tarde com Markus vai te fazer bem feliz.
- O The Brewery Trail inclui 4 vouchers para 4 diferentes tipos de cerveja servidas nas casas participantes, duas trufas de rauchbier, um tradicional abridor de cerveja de aço e a brochura com o guia e indicações. Custo: 22,50 euros por pessoa. Disponível o ano todo. Para comprar, clique aqui
- O tour comandado por Markus tem cerca de quatro horas e inclui degustação guiada de nove estilos de cerveja, introdução ao processo de produção e história da cerveja alemã e city tour entre as degustações, realizadas em diferentes locais da cidade. Custo: 79 euros por pessoa. Disponível apenas com reserva antecipada. Para agendar, clique aqui
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